20120430

Praxeologia



Acabo de sair do refeitório de uma instituição de Ensino Superior Politécnico, no qual assisti ao seguinte cenário: alunas trajadas, alimentando comida de gato à colher  a (presumo que) caloiras que, de olhos fechados, ignoravam o que ingeriam.

Nem sequer vou referir o facto de a praxe estar proibida dentro das instituições de Ensino Superior Politécnico. Sobre isso há, creio, normas suficientemente claras que configuram e enquadram esta prática em sentido puramente disciplinar. Interessa-me muito mais tudo o resto, sobre o qual vale a pena tecer algumas considerações.

Sobre as vítimas, e respondendo à questão "porque se sujeitam a tamanha estupidez?", direi apenas que
talvez esperem maturidade de quem se apresenta trajado. Injustificadamente, na mais que provável grande maioria dos casos. E interessa ter em conta o contexto: nem todas e todos os que chegam ao Ensino Superior - Politécnico ou outro - o fazem com uma personalidade suficientemente forte para resistirem a exercícios de autoridade arbitrária praticados por pessoas cujo poder real desconhecem. Não deve, por isso, ser apontado ao fraco a falta de carácter do forte.


Sobre os algozes já devo dizer um pouco mais. Mas antes permitam-me fazer aqui uma precisão conceptual. Segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, à entrada praxe corresponde

s. f.
1. Uso estabelecido; costume.
2. Sistema, formalidades.
3. Etiqueta; pragmática.
praxe académica: regras que governam as relações académicas na Universidade de Coimbra.


Portanto, a primeira nota a fazer neste particular é, na prática, a imitação (para não dizer usurpação) de um ritual geograficamente enquadrado, próprio de uma - e apenas uma - universidade no país, à qual corresponde um conjunto de práticas normalizadas com uma determinada continuidade cronológica.

A segunda nota a fazer prende-se com o que ela significa. E neste particular tenho por uma praxe digna desse nome uma ajuda, um apadrinhamento colectivo, um acto de generosidade não-egoísta de quem espera facilitar a vida a outra pessoa. Não o que ela se tornou: uma carta branca para exercícios de poder arbitrário, ou de facilitação de superioridade de género.


Ainda que existam exemplos de praxes organizadas, que respeitam a dignidade do praxado, não posso usar os bons exemplos para justificar os maus. Mesmo que se considerem alguns "bons" exemplos, há por cada um deles centenas de exemplos de humilhação gratuita de quem, à falta de auto-estima própria, se diverte vingando-se do mundo nas alheias. Aliás, se esses "bons" exemplos existem, devem ser eles a proteger a sua própria imagem e a banir os maus exemplos. Não vejo fazê-lo: talvez aprendendo precocemente com esta idade, o corporativismo do traje é muito útil e conveniente a certas personalidades, quando não a certas carreiras: encolhem-se os ombros e "permite-se". E deve, então, a questão ser colocada: quem começa com valores e carácter destes à entrada dos 20, que adulto será no resto da sua vida? E em que medida não explica este tipo de forma(ta)ção o mundo em que vivemos, quando parte dos processos de decisão estão na mão de pessoas com este perfil?

Por essa razão, todos aqueles que conseguem, ainda hoje, fazer a defesa da praxe académica como pretensa "inclusão", "aconselhamento", "camaradagem" ou "experiência de formação de laços entre alunos" precisam rapidamente de repensar a sua própria hipocrisia. E de guardar bem guardadinha a viola no respectivo saco, beneficiando a todos com o seu silêncio. Se há coisa que devemos todos recusar é bullying. De qualquer espécie. Em qualquer idade. Em qualquer contexto.

1 comentário:

Moriae disse...

Comme d'habitude ... ***** elevado a N!