20120803

Andamos "nisto" há décadas, mas isso não importa nada

«O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.» 


Ontem ouvi um senhor de cabelos brancos dizer o seguinte: o único governo que não lixou o povo foi o de Vasco Gonçalves.

Fiquei a matutar naquelas palavras. Recordava-me que Vasco Gonçalves esteve nuns quantos governos provisórios e fui pesquisar para me instruir um pouco. Em resumo, Vasco Gonçalves foi Primeiro-ministro de 12 de Julho de 1974 a 19 de Setembro de 1975 (derrotado pelo PS em eleições), e mentor da reforma agrária, das nacionalizações, do salário mínimo, dos subsídios de férias e Natal. No entanto, foi afastado por todos os partidos.


Caricato como o senhor idoso não pronunciou uma palavra sobre Salazar (pelo que lhe conheço, imagino que se bateu contra a ditadura de então), mas o tom pesaroso com que emitiu a sua opinião revelou um pesar pelo presente, o luto pela luta.


Tendo em conta as palavras que ouvi e o que depreendo do que li - salvaguardando que não formei favoritismo pelo "gonçalvismo" no qual não sou especializada -, a minha crença que vivemos numa quimera democrática é reforçada, que o "ideal de Abril" é utopia. Não defendo de forma alguma a ditadura, mas não será isso o que temos, uma ditadura encapotada na inversão de valores? Que Estado é este que corroí o país?


Continuo curiosa com o paradeiro da gente idónea, que se passou para que fossem arredados, em última análise, ostracizados - por vezes surgem Contos, como os de Rui Mateus, que se esfumam (como por magia) das livrarias e alfarrabistas, escapam as Farpas do Eça e Ortigão, mas esses já se foram e tiveram mérito em idos oportunos. Sobretudo, continuo sem compreender qual é a substância que se respira em Portugal e deixa a população permissiva a este sistema político, repleto de vícios e ciclos encenados.


Parece que os mais novos ficaram comandados à nascença, com a devida autorização parental que sonha um futuro brilhante para o rebento - tenhamos o canudo e os males estão resolvidos. Parece que "isto" anda muito mal, a precariedade aumenta, técnicos superiores a 3€/hora. Mas dizem os analistas que os mais novos não votam. Porque será?
 
Andamos "nisto" há décadas, mas isso não importa nada.



Fonte da imagem: Biblioteca Nacional
Fonte da citação de Eça de Queiroz, em "As Farpas, Maio de 1871: Na Cabeceira

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