20120703

Lembras-te de Mohammed Bouazizi?

Lembras-te de Mohammed Bouazizi?
(como recuperar a memória do confronto)
                                                                                               do amigo "Vadio"
Eu sei que te recordas, facilmente te recordarás: era aquele jovem que vendia fruta e legumes em Sidi Bouzid. Imolou-se, e veio a morrer dias depois em consequência da imolação.

Bouazizi tinha um diploma como tu; desemerdava-se com o seu carrinho ambulante, tal como tu te orientas com as tuas merdas, para contornar o abandono a que te sentes votado pela sociedade, pelo Estado, pelo mundo que te rodeia. Bouazizi já não tinha sequer a solução da emigração, porque a nossa querida Europa deixou de precisar “deles”, sabes como é: abriu-lhes as portas quando dava jeito para enriquecer mais um pouco e depois atira-os ao mar, bye bye, hasta la vista.

Não queria começar a falar num tom mais sério, porque estamos todos tão fartos que já nos fartamos de tudo. Estamos fartos de ler o jornal, fartos de receber emails, fartos da mesma conversa na rua... Não queria que me compreendesses mal. Se escrevo, não é para fazer-te mal, mesmo se por vezes pareço estar contra ti por causa das interrogações que me parecem necessárias para atravessar o deserto de olhos abertos. Pensar em determinados ângulos de visão só nos fará bem. Mas não os tomes como pontos fixos. Nem de fuga à realidade, aquela que nos espera fora dos plasmas, das redes sociais, dos textos de circunstância. 

Dá-me o benefício da dúvida: não te apresses a compreender-me, às minhas palavras, se gastas tanta da tua compreensão, no dia-a-dia, para encaixares o mal-estar que te provoca este tempo de impostura política, de opressão social, de barbárie humana e ecológica. Repara: o patrão exige-te a qualquer momento que lhe obedeças e que o ouças, dita-te tudo tim tim por tim tim, ou tem alguém que faz isso por ele, e tu comes e calas; o governo sussurra-te todos os dias aos ouvidos, naquele ar contido e esgazeado dos tecnocratas, uma melopeia cínica, pedindo-te encarecidamente que acredites na mentira, que engulas a austeridade como inevitável e para todos, e que as medidas governamentais, determinadas pelo círculo dos máximos responsáveis pela conjuntura social actual, são para o bem comum, em suma, o governo manda-te rever por baixo a tua condição de explorado, oprimido, humilhado, e pede-te estabilidade, sacrifício, contenção, ordem; a TV entra-te pelos olhos dentro e desvia para canto a realidade, desvia-te da tua realidade, uma espécie de narcótico, cujo contrabando está nas mãos de um cartel de elite, hábil na fabricação da realidade, exímios ficcionistas sociais; os bancos esmifram-te o que tens e o que não tens...

...então, se estás embebid@ neste interminável programa organizado de intoxicação dos teus neurónios e se apanhas, a toda a hora, socos no estômago, diz-me, será que podes ouvir o que tenho para dizer? Será que o teu mal-estar pode ser provocado por um simples texto? Será que é a mim e a outr@s, cada qual à sua maneira, que te dão um treino menos digestivo ao estômago, que deves rechaçar de uma assentada e, na maioria das vezes, por reacção emocional, as perguntas que te damos? Não te iludas, não são as “perguntas” que te encostam contra a parede. As “perguntas” apenas te impedem de não ver o que teimas não querer ver: que a parede já lá estava e continua a ser construída; que tu, e eu, e tantos outr@s, estamos cercados, por todos os lados. 

Sei que te apressas também a pedir-me brandura, que escreva o que tenho a dizer como se tratasse de uma tese e dedicasse o último parágrafo à síntese, às conclusões. Em suma, que ordenasse os factos e os acontecimentos sem os interrogar ou pôr em causa. Por outras palavras, aceitando-os, isentando-me de interrogar a realidade, esse pobre papel levado tão a peito pelos jornalistas*. 

Porquê isentarmo-nos da realidade? A realidade não é uma conclusão? A destruição do bem-estar da tua vida por uma ordem económica e autoritária não é uma conclusão? A morte brutal de milhares de iraquianos não é uma conclusão? A eliminação do sistema público de saúde não é uma conclusão? A perda contínua de direitos laborais não é uma conclusão? O alargamento do fosso entre ricos e pobres não é uma conclusão? (Conclusão essa num contexto de crescimento económico...!) A hipocrisia dos discursos dos governantes não é uma conclusão? O poder discricionário das agências de rating não é uma conclusão? A desastrosa cultura anti-ecológica dominante não é uma conclusão? Guantánamo não é uma conclusão? Polícia à paisana a bater e prender manifestantes numa rua de Lisboa, não é uma conclusão? Alguns também me chamarão de trágico, quiçá de vate. 

O Vale do Ave e o Grande Porto são tradicionalmente as regiões do país com as taxas de sucídio mais baixas. No Ave, ainda entre 1996/99, suicidava-se uma pessoa por 100 mil habitantes, bem longe da realidade do Alentejo, onde em alguns concelhos mais de 30 pessoas por 100 mil habitantes cometem anualmente suicídio. Sabe-se também pelos dados existentes que são sobretudo os homens que se suicidam. E a diferença, em relação às mulheres, é significativa. 

Nos últimos anos, na região do Ave, a realidade parece ter mudado abruptamente. Em 2010, um alto responsável de saúde falava em mais de 30 suicídios nesta região. O director do Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Centro Hospitalar do Alto Ave afirmava que “num ano fizemos 15 mil consultas, 200 internamentos e temos seis mil pessoas em atendimento continuado”, por motivos de saúde mental. Outra técnica do mesmo serviço hospitalar, referindo-se ao problema do suicídio e apenas no Alto Ave, explicava “que num só ano de avaliação destes casos foram 162 as tentativas de suicídio na região do Alto Ave, 128 das quais perpetradas por mulheres e 34 por homens”.

Que circunstâncias podem explicar esta alteração súbita e, principalmente, que razões podem explicar esta disparidade relativa entre as tentativas de sucídio das mulheres, que agora se sobrepõem exponencialmente às perpetradas pelos homens? 

Será da depressão acentuada do Vale? Condições orográficas específicas? Masoquismo genético por consanguinidade geográfica? Valerá a pena fazer as contas? Determinar a percentagem de crescimento do suicídio feminino? Estabelecer o índice de suicídio X, ípsilones acima da média habitual para a região? Porque se apaga este desesperante mal-estar social? Por que razão até hoje nenhum suicídio do Vale do Ave foi visto como um acto de desespero político? Acharás também que o facto de a prostituição feminina ter aumentado visivelmente no Ave é uma questão de gosto pessoal? Economia alternativa? Ali abundam factos que estabelecem a ligação da lógica de poder capitalista ao patriarcado. Observa-se como os fins lucrativos do mercantilismo, ao assentarem numa visão patriarcal, ganham rentabilidade ao fazerem perdurar uma discriminação sobre a mulher, que sofre uma “dupla” opressão conjugada. 

A prostituição e o suicídio são gestos extremos. Gestos carregados até à boca com o silêncio. Ou, mais precisamente, carregados pela atmosfera de silenciamento. Gestos coagidos a reprimirem o próprio grito. E esses gritos reprimidos, se audíveis fossem, atingir-nos-iam. Como nos atingiu a imolação de Mohammed Bouazizi. E se ninguém havia reparado nisso é porque as estruturas sociais que determinam o que é e não é político lavam a humilhação a que homens e mulheres anónimos estão submetidos e sublimam o sofrimento humano através do prozac; do gabinete do psicólogo, que encerra a humilhação económica e espiritual em causas individuais; através dos padrões de sucesso e insucesso moldados pelo omnipresente central-shopping, essa amável atmosfera de luxo e falsa abundância; através do culto ao artigo-consumidor, do Ferrari do patrão à publicidade, esse programa contínuo das televisões; através da impostura dos Centros de Emprego, pressionando os desempregados (já em si fragilizados pelas condições de violência económica que enfrentam) a aceitarem a integração na máquina exploratória, ou promovendo acções de formação compulsivas, que qualificam para melhor produzir, ou seja, para tornar mais eficiente a exploração, sem qualquer intuito de fortalecer os recursos dos trabalhadores para melhorarem a sua condição laboral; enfim, apaga-se a condição do suicidado pela sociedade através da destruição dos laços comunitários e, nessas latitudes nortenhas, ainda com a excomunhão da alma-penada católica. Esse apagamento planeado das razões políticas e sociais do mal-estar humano, enfraquece-nos e destrói o sentimento de pertença a um colectivo, tudo aquilo que, a pouco e pouco, serviu e serve a renovada estratégia do neoliberalismo, o braço cultural do capitalismo: fazer crer que cada um de nós é um corpo-autómato que vive separado da realidade dos outros... tudo aquilo que engendra as condições óptimas de inércia e isolamento, a ponto de a cultura dominante ter feito de cada um de nós uma espécie de técnico de assistência à eutanásia colectiva. 

Porém, tomados por átomos individuais, continuamos a ser usados secularmente, em massa, na engrenagem colectiva da organização da mentira económica do capitalismo: a máquina de produção. Como se pode chegar ao artifício de fazer crer que o espaço físico e temporal onde as pessoas passam mais horas da sua vida activa não é, precisamente, a matéria mais política que pode existir (existe) na vida social? Se esse espaço se intromete na existência humana dessa forma tão extensa, como despolitizar todas as consequências que acarreta estar compungido a um local de trabalho, onde se é explorado, onde não se dispõe de poder de decisão, onde se está submetido a uma hierarquia, onde se faz, na maioria das vezes, um trabalho entediante, triste, opressivo, onde não se tem acesso ao que ali se passa, mesmo se o que ali se passa é feito à custa do esforço e do sacrifício do trabalhador?

O que tens a dizer? Que os problemas do Vale do Ave (que estão por todo lado, mas ali concentrados) são inevitáveis?

Diz-me, consegues tu explicar porque é que nos jornais não saem aquelas infografias tão catitas, já não com bonequinhos em chamas na orla sul do mediterrâneo mas com a corda do enforcado ou frascos de anti-depressivos? No teu jornal de eleição, não haverá ninguém especializado na farsa a frio? 

Tu conheces a lengalenga. Mas não te enganes. O ditado que corre de boca em boca é a versão popularizada composta pela História oficial. Se te abeiras das gentes dali e dacolá, tentando perceber como eles problematizam o problema, porque enfrentam eles um contexto crónico de violência económica e social, ou, mais correctamente, porque foram submetidos a esse contexto, enquanto o patrão que os esmifrou se passeia sem peso na consciência e um incalculável peso na carteira, escutas como resposta: “Foi porque o patrão trabalhou para isso...”, apesar de terem sido eles a esfalfarem-se, a fazerem o pior trabalho, o mais rotineiro, o mais cinzento, o mais pesado, o mais sujo, apesar de terem trabalhado uma vida inteira para alimentar a opulência do patrão; tu não aceitas essa versão e, então, eles e elas emendam a resposta, dizem, talvez tenha sido dos estudos, “estudou para isso o nosso patrão...”, esquecendo-se da sua própria filha diplomada e caixa no Intermarché, ou inscrita nessas agências de viagem à exploração em classe resort, à espera de uma vaga para camareira na Suíça... a troco, claro, de ter escondido que tem um diploma, de que nada lhe serviu (tirando o estágio não remunerado que fez na fábrica do patrão dos pais, esse que para vencer na vida não precisou de diploma, munido que estava com um mestrado na arte do roubo organizado), e de ter pago uma maquia em euros pelo serviço da agência, essas que em breve receberão subsídio do Estado para lucrarem em privado com a fraude da exploração pública; então, posto a nu que afinal o patrão não passa de um analfabeto equipado, o tom da resposta muda um tanto, pressente-se que a convicção começa a claudicar, então, então, “o patrão teve sorte!”, apre que são sempre os mesmos poucos a ter sorte e tanta gente sem sorte nenhuma; apesar de menos crédulos, resta-lhes a expressão com que se refaz o mundo, um sentido total para a submissão e a exploração, mas inapreensível pela razão: “Foi Deus que assim o quis”. Que qualquer deus seja uma arbitrariedade, ontem como hoje, não foi precisa muita ciência para que o capitalismo o destronasse, como profeta incontestado dos tempos modernos. 

Tu, que já não tens a desculpa da crença na nossa Senhora, talvez queiras agarrar-te à mentira da meritocracia. Até onde penetrou a cultura liberal no teu pensamento? Vamos, compete lá, já começaste a competir pelo teu mérito... mas convém que não olhes para as estatísticas, evita a náusea, toma I-só-star e serás o campeão… é que entre 700 mil desempregados (oficiais, fora aqueles que por instinto, consciência ou cansaço, há muito sabem da inutilidade de estarem inscritos numa anomalia), e 1 milhão de precários, olha que tens que correr muito, vá lá, por este andar ainda alcanças os mínimos para ires ao Rio em 2016, que rico carnaval mercantilista será… 

Explica-me, como podes acreditar na democracia (por democracia suponho que entendes o que diz o senso comum, igualdade de direitos e oportunidades) se passas a tua vida num local de trabalho onde não experimentas a democracia? Onde não só não experimentas a democracia, mas és estimulado à competição, ao individualismo, ao falso mérito, à obediência, à impossibilidade de questionar o poder estabelecido nesse local onde passas a vida, ainda assim, acreditando que acreditas na democracia? Diz-me, qual é a tua evasão? Vergas pouco a mola, és maganão? (Não seria a menos resiliente das atitudes... Por falar nisso, será que se os maganões fossem tão significativos em número, seria possível criar tanta riqueza acumulada, tanta fortuna nas mãos da oligarquia?). 

Se sabes que racionalmente não há compatibilidade nenhuma entre a construção da democracia, das tuas necessidades, da tua palavra, do teu direito a viver, com o desprezo humano que está imbuído nas organizações onde todos estamos integrados (que sob a lógica do mercantilismo, do lucro, dos mercados, qual pesadelo global, se baseiam no princípio da hierarquia, do autoritarismo, da oligarquia, do segredo, e da força da violência), como compatibilizas a “verdade” da tua vida e dos teus valores com a mentira que te cerca? Dir-me-ás como fazes, para te compatibilizares na tua vida diária com essa mentira que nos cerca? Diz-me, não terás uma única esperança, as tuas entranhas não guincham? 

Ali no vale do Ave vê-se melhor a precariedade em que assenta a globalização neoliberal, base em que por sua vez assenta toda a sociedade e a civilização capitalista. Via-se desde há mais de uma década o que nas nossas vidas parecia estar a salvo (fazer-te crer que estavas a salvo, fazia parte da ilusão, da cosmética e do marketing das indústrias de distração), quando apenas estava um pouco mais oculto, mas já entranhado na nossa pele. Agora vês. 

Ali também se estabelece a relação com a crise ecológica global. Com o desprezo pelo ambiente natural, com a utilização devastadora e anti-racional de recursos. Da urbe veio o que nela é pobreza para aniquilar o que no “campo” era riqueza. Na medida em que a civilização assenta na escravização da natureza não existirão pessoas livres, sociedades igualitárias e autodeterminação generalizada. Não existirá sustentabilidade ecológica sem o desmantelamento da máquina de produção e consumo do mercantilismo.

A Indústria e a ideologia do industrialismo significam a dominação técnica dos meios do capital para atingir os fins do capitalismo, à custa da submissão dos trabalhadores e da exploração irracional dos recursos naturais. A maquinação, a automação, a tecnologia moderna, a tecnociência, são realizadas dentro de um plano de necessidades da produção capitalista, da sua expansão e domínio. A Indústria e o mito do (falso) progresso que a legitima não nasceram de uma necessidade esboçada pela sociedade, entendida esta como colectivos conscientes e politicamente capazes de decisões conjuntas, nem procuram na sua essência a emancipação humana. Se quisermos entender (ecologicamente) a humanidade no seu todo, se admitirmos o princípio democrático de que humanos somos todos – todos, e não apenas “nós, brancos, ricos e civilizados”... –, se não condescendermos que a abundância material é um bem em si e que a degradação espiritual é um mal menor, dificilmente encontraremos argumentos para ver na industrialização um processo emancipatório. Sobretudo, se questionarmos o resultado mais profundo e nocivo deste falso progresso: a renúncia humana a ser dono e dona das suas próprias condições de vida. 

No ensaio eficaz da sociedade mercantilista no Ave, vê-se a Europa e o mundo. E o que vês (particularmente na Europa) parece-me medonho: o capitalismo avançado (é sempre divertido dar uso a este tipo de jargão tão sedoso...) foi tão longe que para o capitalismo sobreviver tem de hoje regressar ao capitalismo primitivo. A Europa que acumulou recursos materiais, tecnológicos, culturais, científicos – à custa da exploração contínua e da pilhagem de bens naturais nos países dominados -, como provavelmente nenhum outro continente (o ponto de vista da acumulação vale por ser uma constatação, não cabendo nesta passagem nenhum cunho avaliativo a esse processo de acumulação), não conseguiu mais do que conduzir a sociedade a este beco absurdo: a proletarização caminha para que um assalariado trabalhe para fortalecer o poder e a riqueza de uma elite, não assegurando ao mesmo tempo para si as condições necessárias para pagar a casa onde vive e a sua comida. Nem ao senhor lhe ocorreria negar um tecto e a comida aos seus escravos... 

Em termos gerais, a campanha do capitalismo actual é baixar salários, destruir direitos laborais e restaurar condições reais de submissão dignas de traficantes negreiros, esvaziar (ainda mais) os sindicatos e, com estas linhas de força, fortalecer o seu poder e manter o nível dos seus lucros. Nestas crises, que servem para o grande capital redefinir a sua parada, constata-se que os poderes que regulam governos e economias não só já não se esforçam por esconder que legitimam com as suas acções e práticas políticas a desigualdade existente e o ecocídio actual, como provam que desejam expandi-las. Isto é, tornar essa realidade, já de si intolerável, não só real e planetária, como dar-lhe corpo de lei e normalizá-la. Uma agenda de dominação e de devastação. Num olhar atento, saltará à vista a coerência entre o princípio capitalista de crescimento contínuo (premissa anti-económica e, por isso, irracional) e esta intrínseca necessidade de o capitalismo só conseguir sobreviver se se expande, se essa agenda de dominação e devastação cresce continuamente. 

Na Europa pejada de recursos, parece uma ironia de mau-humor que massas materialmente privilegiadas (nas últimas três décadas, uma geração cresceu generalizadamente com um manancial de condições materiais dificilmente comparável em grau a qualquer outro período histórico na Europa) só reconheçam o colapso de uma fase do capitalismo quando elas próprias se sentem em colapso... material. Não andará longe da verdade dizer que a despossessão espiritual, levada a cabo pela cultura de integração neoliberal, nunca bateu tão fundo no tocante à separação das causas e dos responsáveis desse colapso civilizacional. Num contexto de degradação social e humana tão profundo, quer a incapacidade generalizada de reconhecer o confronto, quer a perda intuitiva e racional de apontar na direcção daqueles que estabelecem a violência e o mal-estar que entram nas nossas vidas, parecem paradoxais. A cultura liberal jogou alto na assimilação dos valores espirituais cultuados pelo capitalismo (individualismo, obediência, quebra de laços comunitários, competição, meritocracia, patriarcado, empreendedorismo, consumo-logo-existo) e venceu a toda a linha. 

Neste contexto de destituição dos meios espirituais e da sua autonomia, os movimentos contestatários (em Portugal) poderão cair no caminho equívoco da reapropriação como fim da luta. Será que raiz destrutiva do sistema actual, tanto no campo espiritual como no económico, já não acumulou provas suficientes para que na Europa abastada seja ainda o peso na carteira e o ditame económico, mais do que uma negação racional de um sistema cultural inadmissível e injusto e/ou um sentimento vital de revolta, a engrenarem a marcha da contestação? 

O equívoco da reapropriação do poder – que a própria esquerda marxista-trotskista deixou cair em 40 anos, edulcorada pela integração cultural da negociação dos direitos laborais e dos direitos do consumidor, abdicando de pôr em causa os detentores de poder (que ao menos fizessem jus à consciência prática e combativa dos seus antepassados recentes, o que faria falta), malgrado jamais houvessem questionado o poder em si, os seus mecanismos, as suas práticas de hierarquização das organizações sociais, nem o modo capitalista de produção, nem a mentira do progresso enquanto extorsão da natureza para consolidar o lucro e a hegemonia de meios de controlo social e político... etc., etc., ...) –, pode voltar a repetir-se, se os intuitos de transformação da realidade social não trouxerem uma revolução espiritual, dos valores e dos fins dessa transformação social. Enfim, se não formos capazes de desmantelar e de tornar obsoletas essas formas, aparatos e práticas do poder dominante. Caminho que será esboçado quando as populações reganharem a capacidade para agir sobre o seu próprio mundo, as suas necessidades e os seus desejos.

Desvalorizando a crítica radical à lógica do mercantilismo e condescendendo com o sistema de poder político da democracia representativa, assim se continuará a dar a margem de manobra que o poder dominante precisa para ditar o que é o colapso e para pensar por antecipação nas estratégias de preservar o seu domínio. Enquanto não nos anteciparmos aos conceitos e às renovadas formas de dominação do capitalismo, continuaremos amarrados aos seus aparatos dissuasórios, aparatos que regulam a vida para impedi-la que tome lugar. É preciso extinguir o medo. E com ela, extinguir o medo à lei... se antes da lei vem a vida e o grito. 

Não chegou já o tempo de reclamar a vida, antes de pedir um emprego ou melhores condições salariais? Não chegou ainda o tempo de criar alternativas económicas que refutem a técnica destrutiva do capitalismo?

É preciso questionar o tormento de não ter um emprego onde se passará a vida sem poder dizer népia sobre a vida, onde tudo o que ali se passará é decidido por quem nunca iremos conhecer. É preciso perceber que nesse altar invisível reaparece uma miragem, uma miragem inquestionável, qual muti-milagre-multi-nacional, prá menina e pró menino, restabelecendo a pia crença no senhor... É preciso extinguir o medo ao Estado, que se vende e que te vende a ti... e que tormentos são estes face à vida que lá vai? Face à comunidade que deixa de existir? Face à natureza destruída? Poderemos deixar que esse medo e esse tormento nos aviltem mais? Quanto tempo perderás mais à espera de uma libertação dependente de uma circunstancial rotina em que dizes “fazer pela vida”, quando nesse espaço de tempo sabes que raramente tens oportunidade para viver? Porque essa circunstancial rotina não passa, bastas vezes, do bussiness as usual com que amos e chefes te tragam a vida. 

Padecendo de um aborrecimento mortal, sem desejo, fantasias argumentos para que te convenças que o pesadelo diário da tua vida (o sonho dos oligarcas e amos da sociedade) é “um mal menor”, quando sabes que o sonho que te vende uma universidade, o paleio de um qualquer gestor de recursos humanos num inquérito-entrevista ou um anúncio de TV, são tudo aquilo que (primeiro) não te podes permitir nem alcançar. E depois, (segundo) permitir o quê? E alcançar o quê? Tornar-se um auto-empresário da sua condição exploratória? Ganhar um lugar ao sol na máquina de destruição de recursos? Passar a integrar a gestão política ou económica do descalabro social e ecológico? Mas poderemos sair da impotência, que nos esmifra a vida e a vontade de viver, pedindo pela integração na máquina que perpetua a humilhação e a injustiça social? Podemos exigir reformas, a um sistema que argutamente não pára de se reformar, não na direcção das ilusórias expectativas de transformar a sua base anti-democrática e oligárquica, mas no sentido de se auto-sustentar ao expandir a exploração e a dominação? 

Não é o sistema que tem de começar de novo, é a nossa vida em comunidade, cooperação e autogestão. Trata-se antes de reganhar uma consciência imediata das condições que asseguram a vida plena, a vida autónoma e colectiva. Trata-se de perceber no imediato que a expropriação dessas condições e recursos, em nome de um falso progresso, equivale à destruição de uma cultura, aquela que entende que a vida é inextricável do mundo colectivo onde ela se dá e realiza. O rastro deste paralelo parece extraviado. O liberalismo é isso mesmo: separa-nos do mundo e das pessoas que como nós passam por espaços “com gente”, onde a vida se perde. Assim nos separamos docilmente, homeopaticamente, do que há de humano, assim nos separamos de nós mesmos. 

E é necessário, de uma vez por todas, voltar a ver nisso um confronto à vida. E não ter dúvidas que esse confronto é organizado, é operativo. E que essa operatividade é condição própria das máquinas de poder hegemónico (Estado, Banca, Indústria). O poder político, económico, financeiro e cultural, continua a organizar essa violência e, simultaneamente, a apagar a proveniência desse confronto. 

O monopólio oficial do poder – dos que dele usufruem – regula “a verdade” e bloqueia percepções e outros ângulos de visão – com a sua tropa, desde os Media, instituições culturais e educativas, e a tropa armada para os casos em que a intoxicação espiritual não produziu os efeitos desejados e/ou necessários. Limpar o ar do fumo tóxico da ideologia liberal mercantilista que os governos e as suas nano-máquinas destilam é um passo necessário.

Volta a ser mais claro agora que antecipar o humano à lei e ao capital não é mais do que querer viver. Voltando (?) a ser necessário na Europa responder a essa questão parida pelo tempo que vivemos, só parece possível uma resposta fruto de uma cultura revolucionária, criativa e criadora. 

Não se pode ser neutral num comboio em movimento”, dizia o historiador e activista norte-americano Howard Zinn. E precise-se: a neutralidade não é neutral. A neutralidade gera também ela energia neutral. A inacção gera inacção. E, entretanto, faz com que o comboio continue a sua marcha imparável. 

Fizeram-nos crer que somos neutrais. Que o nosso espaço comum normal é a neutralidade. Fizeram-nos crer que habitar neutralmente é uma espécie de vida, quando se trata antes de assistir à sua destruição como um espectador. Sem que o houvéssemos pedido, fizeram da nossa vida confronto e violência, e chamaram-lhe contrato social, sociedade do bem-estar, contrato de trabalho, progresso, direitos universais do homem... Houve até quem tivesse bom humor (é preciso rir!) e lhe chamasse capitalismo de rosto humano...

Cai-se no engodo (quem não cai, assim sujeitos à parafernália da cultura que nos cerca), que um contrato de trabalho por se lhe chamar contrato é uma coisa feita igualmente pelas duas partes. O contrato, entre outras coisas, serve para legitimar e domesticar a oposição criada pela propriedade privada, por sua vez resultado da acumulação de lucro, de capital, por sua vez obtido à custa de todos. E este “à custa de todos” parece hoje uma verdade oficial. Parece uma lei imemorial, praticamente inquestionada. “É vida... tem de ser...”. Não será mais uma daquelas verdades fabricadas pelo tempo? E essa verdade, não servirá melhor os poucos que lucram à custa de todos, do que serve “aos todos e todas”? Há quem use termos económicos e académicos para explicar esta evolução técnica e cultural de um sistema de dominação se apropriar da vida de milhões de pessoas. Não há tempo, a tua paciência esgota-se. Sirva a caricatura para atalhar um outro ângulo de visão sobre essa verdade. Antes, à entrada, o senhor punha grilhetas, depois o feitor governava-se facilmente com a soberania do seu amo, que tinha o rei e um deus a zelar por ele, veio ainda o capataz que explorava a miséria com um polícia à porta da fábrica. Os corpos obedeciam, entravam, não tinham remédio. Passaram muitos episódios, caíram grilhetas e os cassetetes foram guardados para outras ocasiões. Agora tu entras com o teu chipezinho bio-métrico para subires na vida, qual self-made-automatóide, e à saída põem-te um hiper-mercado e um playground para te entreteres, para seres tu e só tu, para escreveres a tua história privada. E a História estabelece que “a verdade” consentida é o remédio para a miséria espiritual e que funciona eficazmente nos tempos modernos e pós-modernos. Mas, como tu não gostas de passar por ser um automatóide (nem ninguém), se calhas de recusar entrar nessa História porque não queres essa saída, o cassetete ai bem que regressa. O capitalismo nasce na arbitrariedade e faz-se valer da violência. Rege a tua vida. É confronto. Estabelece-te como um oponente, ao mesmo tempo que apaga os traços da sua arbitrariedade. 

Que magia é essa que nos faz esquecer que, na sua base, o capitalismo é confronto, é violência, é violação do teu poder de existir? 

Como restituir a memória e a consciência desse confronto?

Não saberei demonstrar num texto (já demasiado longo...) aquilo que outr@s souberam fazer no passado ou fazem hoje no presente.

Eu sei que rechaças estas questões, eh pá, não vamos tão longe, também não é assim, a coisa não é assim tão negra!

Será que o que tu gostas na democracia liberal-representativa é que te deixem em paz? Mas... que paz?

E quando vês um prédio a arder no Porto? (Rechaças um prédio a arder no Porto...?) Será que o morador não cumpriu com as normas de segurança? Será que não lhe reconheces o direito a aquecer o quarto frio onde dorme com os meios de que dispõe, como tu fazes o mesmo com os meios que tu dispões? Será que as vítimas eram maganões? Não acreditavam na meritocracia? Achas que são os gestores executivos da EDP, por terem tido a qualificação granjeada por serem ex-políticos ou amigos pessoais de políticos, que fizeram por merecer condições de privilégio absolutamente indignas, quando na base social a pobreza alastra a ponto de não haver meios senão para velas e baldes de tinta a arder com restos de lixo? E se fossem maganões e não acreditassem um pingo que fosse nesta “treta”, merecem morrer e passar frio sem que te interrogues das razões e condições que os tornaram supostamente maganões e descrentes nesta sociedade? A parede deles estava mais encostada do que a nossa... eu estou farto que ignores essa parede, a deles, a nossa, a tua... é só isso. 

A violência e as chamas que tu admites são as que aparecem, fantasmáticas, na TV. Essa violência é espectáculo dócil, tem sempre um final feliz, porque tu sabes que está sempre resolvida sem que precises de tomar parte nela. Aquela realidade não é tua, não é de ninguém, é de quem “a apanhar”, procede de um passe de mágica, todavia menos sofisticado (tanto nos meios como na própria extensão tecnocrática dos dispositivos) do que a técnica cultural destilada para que te alienes da corda do enforcado do Ave e das paredes arruinadas e em cinza dum prédio do centro histórico do Porto. Assistes a um drama e sabes que a tua quota-parte é absolvida pelo feitiço do teu individualismo começar onde acaba a destruição do outro... Ao menos ali, na TV, haverá sempre os bons e os maus. Mal termina a reportagem, termina a violência, alguém deu sumiço aos maus, que voltarão no próximo episódio, e ainda podes contar com o sorrisinho do pivot ao serviço. Entretanto, tentas escapar ao campo da realidade. 

Deste modo, a aparente ordem social mantém-se estável. A distribuição dos papéis não sofre alteração: os bons são sempre os mesmos e passam, inatacavelmente, a verdade; a mentira desta verdade com que os bons preservam a sua proeminente bondade e a sua mediática (e hiper-mediada) verdade é fabricada, diariamente, pelos Media de massa; os maus são actores secundários, usados em palco para manterem a encenação do espectáculo, segundo as circunstâncias necessárias para a fabricação da bondade e da verdade dos bons; e depois, vens tu, protagonista indispensável para dar um sentido total e perfeito a esta ficção durável. Um fetiche funcional em lopp

A gestão da violência da democracia é invisível. É um “crime perfeito”, como diria um sociólogo, tão certeiro quanto cínico. Está descansado, não te vendam os olhos. Muito menos te cegam. Não. Saturam-te a retina com um programa ininterrupto de imagens, discursos, símbolos, de maneira a que percas as condições para pensar no que vês e a faculdade para tomares decisões sobre o que vês; deixam-te sem a possibilidade de escolheres o que vês, excluem-te as opções de como ver

O que significa para ti a destruição de edifícios propriedade do poder e do grande capital em Atenas (puramente simbólica – e os greg@s não pilham, como nos subúrbios de Londres... é apenas uma constatação, mas é notório que a cultura contestatária grega não quer consolas como consolo...) e o confronto físico com forças policiais, quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?
 
Se ardem, como perder de vista que um sistema político de organização da sociedade queimou terreno, durante décadas e décadas, e foi deixando um longo, mas muito longo rastilho? Dão-te guerra e exigem que sejas tu a pacificá-la, eis a pedagogia de controlo da classe dominante. Pacificar a guerra em que converteram a tua vida.

Quando não se quer violência, quando se rejeita a violação da vida e a depredação dos recursos naturais e o seu uso irracional, quando se acredita na autodeterminação, a sociedade em que vivemos deixa de se poder aguentar racionalmente dentro de nós. É possível abrir um mundo, um mundo distinto deste mundo enfeitiçado por falsos pactos de estabilidade, por sono, por tédio, humilhação, servidão, depressão e destruição. Sim, existem tantos caminhos possíveis como formas de pensar a realidade e o mundo. E nenhum porto é o fim da linha. Antes o começo de outras partidas. Mas pensa no exemplo de gregos e gregas quererem determinadamente pôr em causa tudo aquilo que te causa mal-estar, pensa se essa determinação e energia não têm de estar contigo da próxima vez em que sairmos à rua. 

Na verdade, não basta sair à rua: é preciso ficar na rua. É preciso não virar costas. Não se pode não ficar. É preciso passar a estar lá onde estamos sem-estar. Pensa nos caminhos de autogestão traçados pelo jornal Eleftherotypia, pelo hospital de Kilkis, na ocupação do Mercado Municipal de Kipseli, nas várias ocupações que se deram de universidades gregas, onde sobressai a ocupação da universidade de Exarchia. Pensa se não devíamos ser nós a tratar da nossa comunicação, do nosso corpo, do espírito e do estômago. Pensa no Es.Col.a no Alto da Fontinha, no Porto. Pensa no que começaria a mudar na nossa cultura, se cada bairro, (ao menos...) se cada cidade tivesse um espaço colectivo e autogestionado, com decisões colectivas tomadas em assembleia aberta, circulação transparente da informação e a todos acessível, trabalho mútuo e solidariedade. Enfim, em qualquer forma autónoma de construção social com o horizonte numa vida livre de capitalismo e de estruturas anti-democráticas.

Se as criações sociais revolucionárias te parecem hoje chatas, obsoletas, fora-de-moda (quem espera por vernissages na rua há-de partir de espírito alcatifado...), num tempo de profundo mal-estar social, isso explica em grande medida o grau de aculturação que nas últimas décadas baixou o imaginário da vida humana e o medo que nela foi incutido. 

Tal como não era possível saber até que ponto chegaria o modelo capitalista (ou até que ponto chegará...), talvez nunca chegaremos a saber se será possível quebrar o medo geral e construir um caminho de transformação global. Porém, o que sabemos hoje é que existem caminhos já apontados e que são necessários, se queremos mudar de vida e de sociedade. 

VADIO
Março 2012

*(Um simples exemplo deste processo espectacular de reprodução de uma realidade: há dois dias no jornal Público, feito por pessoas inteligentes e preparadas, sai uma notícia sobre as actividades de recreio e distracção de Bashar al-Assad, o ditador Sírio. A notícia não se isenta – menos mal, embora pareça transparecer que um ditador deve proceder de forma diversa, como se fosse mais normal um homem de estado conservar no frigorífico os corpos que manda assassinar e, ao invés, não se refugiar nos aparatos de poder, estatais e culturais, que lhe permitam suavizar e sublimar a condição desumanizante e de separação existencial com o outro, condição essa intrínseca a esses aparatos de poder – deflagrar essa realidade doméstica com a brutalidade da violência que o seu regime faz abater sobre civis. Há cerca de um mês, noutro artigo assinado no mesmo jornal, a propósito da primeira declaração pública em que Obama assume que se recandidata à presidência dos EUA, tecem-se loas a um novo discurso do presidente que revela querer estar do lado dos “99%” de norte-americanos, preocupado e sensível com o movimento Occupy Wall Street, ao mesmo tempo que não aparecem referências aos recursos caseiros usados por Obama para se distrair dos seus projectos de guerra, morte e tortura, linhas de acção estruturais da política norte-americana e que a jornalista, por omissão, compatibiliza com os “99%” e o movimento Occupy, baseado em princípios opostos à administração dos EUA e em valores profundamente anticapitalistas. Mas sobretudo o artigo estabelece essa compatibilização ao aceitar que a palavra de Obama – o seu discurso, o discurso que proferiu nesse acto público – não faz parte da legitimação da impostura das suas práticas, não passa de um cínico discurso “da treta”, repescando as palavras de Bashar al-Assad a que a Media aludiu).

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