20111125

Em tempos de administração do pensamento

Inicio este post com uma ressalva que me parece decisiva, para que não restem dúvidas: não sou sindicalizado. Nada do que afirmo sobre sindicalismo provém de qualquer atitude corporativa. O que me move é o mesmo conjunto de razões cívicas e civilizacionais que movem o sindicalismo contemporaneo: melhorar o que é da vida de todos. Move-me também o reconhecimento estratégico de que, em algumas situações, é impossível não tomar um partido, e não pensar que o apoio que não damos a um o enfraquece perante outro, ou pode por este este último ser utilizado como estratégia de legitimação. Objectivamente, não é do sindicalismo que temos queixas. É bom que não se perda de vista essa ideia.

Demasiado tem sido afirmado desde há alguns dias relativamente aos sindicatos, ao seu papel e acção, ao seu lugar no mundo contemporâneo. A maior parte dessas posições tem sido leviana. Por absoluto desconhecimento da realidade diária dos sindicatos. Por reprodução acrítica - para não dizer acéfala - de discursos com origens e propósitos muito claros, ainda que nem sempre transparentes. Vamos por partes.

A primeira leviandade a que tenho assistido é a uma crítica aos sindicatos que os reduz a uma entidade abstracta, impondo-lhe o que é do abstracto, ou seja, homogeneizando e diluindo o que é extremamente diverso nos seus componentes. Um sindicato é um conjunto de pessoas com uma diversidade infinitamente maior que aquela que move juventudes partidárias e partidos políticos, quer ao nível da caracterização dos seus elementos, quer ao nível das suas agendas e propósitos. Não se faz "carreira" enquando sindicalista pela simples razão de que o lugar do sindicalista não é particularmente protegido, não beneficia de um estatuto social positivo. Não tem entrada garantida em alguns eventos, não é nomeado para a Assembleia da República. São realidades diárias muitas vezes extremamente incómodas, com perseguição e vigilância envolvida. Não é um "emprego" de fato e gravata. Na realidade, a acção dos sindicatos é o reflexo, a materialização, a ilustração da insatisfação de milhares de pessoas no país, estejam elas sindicalizadas ou não, estejam ou não dispostas a reconhecer que beneficiam da acção dos sindicatos, por exemplo, em negociações colectivas. Pessoas que não estão a apenas a dar voz a outras, mas são essas mesmas outras, estão entre esses milhares. Estão na posição de forma altruísta, e podem deixar de estar se outros quiseram tomar esse púlpito. Não assumem essa voz por herança de sangue, por apelido. Não é um direito dinástico como aquele que abre portas a um lugar elegível em listas ao Parlamento Europeu. Não foram "os sindicatos" a "decidir" fazer uma greve: foram milhares de pessoas em milhares de empregos e empresas, cansadas de não serem ouvidas por aqueles que, desconhecendo-as, lhes decidem da vida. Se através da greve o serão ou não, é outro debate.

O segundo ponto que quero fazer prende-se com a consequência da acção sindical, da adequação dessa acção ao tempo que vivemos, às dificuldades por que passamos - dificuldades pelas quais, recordo, não são os sindicatos responsáveis, mas sim muitos daqueles cujos discursos vejo reproduzidos por portugueses que desconhecem a sua origem e o seu alcance. Em primeiro lugar, dizer por exemplo que os sindicatos se movem contra "medidas que o Governo teve que tomar" já é tomar uma posição ideológica, já é subscrever uma determinada forma de ver a realidade, com consequências ao nível do que consideramos legítimo e ilegítimo na acção dos outros. Significa também deitar mão de alguns dos argumentos produzidos pelos mesmos agentes responsáveis pela situação contra a qual os sindicatos (e todos os portugueses) se movem: é, se me permitem a metáfora, chamar o pirómano para "combater" sobre o incêndio. Sempre que ouvimos algo do domínio da inevitabilidade dos sacrifícios estamos a aceitar abdicar de uma parte do nosso próprio pensamento, deixando-o refém da parte do problema que interessa pensar, e inclusivé de um conjunto muito limitado de formas de pensá-lo. Não estamos, já, no plano de nos ser "pedido" que "prescindamos" de algo, como se esse poder estivesse ainda na sua mão: estamos no plano dos factos e não "prescindimos", foi-nos comunicado administrativamente que deixaríamos de ter (esquecendo, entre outras coisas, que o controlo do défice a partir da redução da despesa do Estado nem se faz só, nem se faz sobretudo pela redução do apoio social e do despedimento). Estamos perante factos consumados, e a escolha aqui é muito clara - calar e comer, ou agir. Quem critica quem age normalmente reforça a posição de quem quer calar, gostemos de nos rever nessa imagem ou não. O colaboracionismo também se faz por aqui. Os sindicatos, e todos os portugueses neles e por eles representados directa ou indirectamente, agem: decidem deixar de baixar a cabeça, de aceitar o discurso "tem de ser", de (pelo menos) manifestar publicamente o seu desagrado de formas que não podem ser escondidas sob capas de duvida ou leituras segundas e terceiras (como acontece, por exemplo, com a abstenção eleitoral). Já é muito mais que muitos dos que levianamente os criticam podem dizer de si.

Terceiro ponto: a crítica que tem sido feita à greve enquanto protesto que não pretende defender o trabalho. A greve é, na realidade, uma das últimas (para não dizer únicas) formas que os portugueses beneficiados pela acção dos sindicatos (ou seja, todos) possuem para dizer o que pensam. E não são os sindicatos a afirmá-lo, mas os próprios "pais fundadores" da nossa Democracia, a quem não costuma ser apontada qualquer radicalismo (a menos que consideremos, por exemplo, Jorge Miranda comunista). Bastaria recorrer a algum pensamento contrafactual: que outra forma de pressão para serem ouvidos possuem os sindicatos? Que outro poder possuem que não este, de abdicarem de um dia de rendimento para obrigar a surdez selectiva de outros a reconhecer a sua opinião? A tal "preguiça" com a qual muitos conotam a greve vai custar dinheiro a muitos dos que a fizeram, logo, não é uma atitude inconsequente sobre a qualidade das suas vidas: não é feita de ânimo leve; menos 40 ou 50 euros por dia vao fazer muita falta amanhã, quando o IVA voltar a aumentar, e sobrar mais mês no fim do dinheiro. Mas que fazemos nós, nas nossas vidas, para sermos ouvidos quando sentimos nunca sê-lo, e sobretudo, nunca sê-lo por aqueles que delas decidem? Continuamos a fazer tudo da mesma forma? Entre quem faz greve trabalhando e quem não faz greve sequer não há, no plano material, diferença alguma. É uma ilusão dizer o contrário, e esconder isso com a "produtividade "(que, aliás, já é a importação de uma determinada forma de pensamento, com origens bem conhecidas). Atacar a greve como sempre "contra o emprego" é repetir, palavra por palavra, o discurso de todos aqueles que pretendem que nada mude, a quem o actual estado de coisas beneficia. É deixar sequestrar a consciencia, e pensar no quadro limitado que nos dão para pensar. É aceitar, dessa forma, que nos seja tomado refém o pensamento, a imaginação, levando a considerar que o conjunto de alternativas que temos é bem menor do que parece, tornando-nos parte do problema e não da solução.

Há ainda um ponto que quero reforçar, e que decorre da ideia de que os sindicatos "não representam os não sindicalizados". Penso que aqui vale a pena pensar os efeitos para lá das posições: cada um de nós não-sindicalizado rejeita selectivamente o benefício da acção sindical quando ela é frutuosa? Os direitos que foram conquistados para todos os que, hoje como ontem como amanhã, trabalham foram-no para todos os portugueses. Alguém abdica deles, mesmo não tendo participado do que os tornou possível? Parece honestamente que qualquer proveito a nível de negociação/contratação colectiva, ou de concertação social (quando ela funciona...) não atinge todos? Em limite, se nos "sentimos" representados ou não por ela é quase irrelevante: se somos afectados pela sua acção, mais vale que a apoiemos ou que, pelo menos, não contribuamos para a enfraquecer com críticas pouco reflectidas que só servem os interesses do imobilismo.

Termino recolocando o sindicalismo no espaço que ocupa e que, ainda que merecendo revisões e enriquecimentos, deve continuar a ocupar: o lugar onde convergem as sensibilidades e insubmissões dos muitos que, sozinhos, nada conseguem transformar. Nessa base, e sobretudo perante a emergência de fortes instituições de defesa de interesses particularistas, convém devolver aos sindicatos a força de que precisam para exercer, por todos os portugueses, o protesto e pressão negocial que a todos beneficia. E era bom que, para esse fim, deixássemos de agir como reprodutores inconscientes de discursos políticos hábeis, que insinuam divisões onde elas não devem existir, e que pretendem reportar apenas a parte da realidade que convém ao seu argumento e à inacção que lhes garante a perpetuação das actuais condições em que vivemos todos.

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