20111014

Dos limites para a tolerância

Portugal é já, hoje, um país sem retorno, refém da carneirice cívica que cronicamente reconduz PS e PSD no poder. Tolhidos pelo medo ou pela ignorância, ciclo após ciclo, aproximadamente metade dos eleitores que se dá ao trabalho de colocar o boletim na urna escolhe as mesmas escolas de pessoas, as mesmas ideias, as mesmas sugestões. Os mesmos fracassos. Colocada perante a (in)evitabilidade desse fracasso por parte de uma das duas escolas, o eleitor conduz-se inexoravelmente para os braços da outra, numa submissão consciente que legitima para si próprio afirmando "são todos iguais", ilustração máxima da ignorancia própria. Boa parte do eleitorado em Portugal, para além de prestar um pessimo serviço ao idioma que diz ser seu de cada vez que é chamado a pronunciar-se sobre o regime que alimenta, não conseguiria, digo eu, encontrar o seu próprio derriere (leia-se, conhecimento da "democracia" em que vive) com ambas as mãos mesmo que a sua vida dependesse disso. 

Como deduzem já pelo tom azedo das minhas palavras, não tenho pela maior parte dos eleitores portugueses grande respeito. À luz do que tem sido o nosso passado recente, seria hipócrita da minha parte desresponsabilizá-los das escolhas políticas que os seus representantes eleitos têm praticado. Em paralelo com a inimputabilidade dos titulares de cargos de representação política, vive-se a inimputabilidade crónica do eleitor, atribuindo maioria após maioria aos mesmos dois suspeitos de sempre, em alguns casos com a inacreditável carta branca que a sua natureza absoluta confere. Exibindo uma ignorância que, em alguns casos, é assumida com orgulho - como se qualificasse individuo algum de forma positiva faze-lo - o eleitor português tende a conhecer quase zero das ideias dos partidos para lá do espectro familiar em que se move, desconsiderando-os com as pseudo-ideias e pseudo-narrativas que os media e algumas personalidades através dele continuam a fornecer-lhes, garantindo estabilidade ideológica (fantástico eufemismo para imobilismo) que perpetua as vantagens de alguns, em detrimento de todos.


Vem tudo isto a propósito da nossa conjuntura, na qual - e para variar - temos uma dessas duas escolhas a destruir um pouco mais do que pertence a todos, agravando a qualidade de vida desse todo para garantir a eternização dos benefícios dos alguns, em cujos círculos querem continuar, espécie de corte que assiste às chamas de Roma à distância confortável da opulência material. Para variar, também, erros próprios são justificados com dificuldades herdadas - como se esse devir não fosse, ele próprio, a herança da acção própria passada -, ou ainda, argumento recorrente, com o que se passa "lá fora", essa grande cortina de fumo que faria corar Orwell, se ele soubesse falar português. O passado e o exterior, habituais instituições políticas de costas larguíssimas, continuam hoje - e continuarão futuramente, à luz da evolução expectável da literacia política dos portugueses - a ser a cenoura na ponta da cana com a qual continuamos a encaminhar a carneirice cívica nacional. Nestas coisas convém ter presente o seguinte: se nao protestamos o que nos é feito, não merecemos que nos seja feito melhor. Até um cão, eventualmente, rejeita a dor que o dono lhe provoca. O eleitor portugues, aparentemente, não tem limites para essa tolerancia. E quem decide conta com isso. Até que lhe seja demonstrado o contrário.

Quando questiono alguns portugueses sobre a razão do seu imobilismo, da ausência de protesto, de incómodo de alguma espécie, tenho ouvido com relativa frequência a resposta "as pessoas estão fartas de ouvir más notícias". É extraordinariamente grave, esta resposta e o pensamento que lhe subjaz: reduzirmo-nos a uma surdez selectiva às más notícias não faz desaparecer o seu efeito sobre as nossas vidas, da mesma forma que a abstenção não evita que sejamos governados por pessoas eleitas pelos outros. A diferença é só uma: como dizia Platão, se não participamos daquilo que nos decide a vida para lá da nossa vontade, não podemos surpreender-nos que sejam eleitas pessoas piores que nós para faze-lo. A esperança não é um substantivo, mas um verbo. É um músculo que atrofia se não estimulado. Indignarmo-nos não é um fim em si mesmo, mas o principio de outra coisa. E essa outra coisa, sejam ideias novas, sejam condutas novas, não emerge por auto-geração: tem de ser cada um de nós a dizer o que pensa, a contribuir 1º) para um entendimento de que o que existe não é suficientemente bom (e em alguns casos, francamente mau, como acontece agora), e 2º) para demonstrar que essa mudança é necessária e inevitável. Enquanto o retrato da população que chega a quem toma decisões for "isto desagrada-lhes mas eles adaptam-se e aceitam", o terreno vai continuar a ser fértil para mais decisões do mesmo tipo. Até um cão, eventualmente, rejeita a dor que o dono lhe provoca. O eleitor portugues, aparentemente, não tem limites para essa tolerancia. E quem decide conta com isso. Até que lhe seja demonstrado o contrário.

2 comentários:

Moriae disse...

É um belo texto, Pedro. Bem verdadeiro! A ver vamos se amanhã se vê algum protesto, fora das casas e se outros passarão a fazer-se sentir, em todos os locais.

"Nestas coisas convém ter presente o seguinte: se nao protestamos o que nos é feito, não merecemos que nos seja feito melhor."

feminomania disse...

Excelente texto.É bom saber que não estou sozinha.

A minha tristeza é profunda,

As dificuldades na escola, com a chusma do diretor e quejandos, colegas, alunos e...financeiras começam! Dói o corpo e a alma. Ainda há xanax para poder dormir e acalmar a raiva que me dilacera.

Quero agir. Dizer que não quero este governo nem os dos últimos trinta anos.

Quero aniquilar os incompetentes e irresponsáveis; fazê-los sentir(e pagar), pois nós sabemos governar a nossa casa e trabalho e eles são a zurrapa humana que é manipulada(e bem paga) pelo Capital que domina o mundo!

ABAIXO O sistema!!