Entre as pérolas que os media todos os dias nos servem, investidas de
uma aura de objectividade que raramente sobrevive a um escrutínio
rigoroso, um tema revelou nos últimos dias, em toda a sua transparência,
a falsidade da premissa de equidistância do discurso noticioso face ao
objecto noticiado: a troca - palavra absolutamente inadequada mas
infelizmente popularizada e legitimada através dessa popularização -
entre prisioneiros políticos mantidos em cativeiro pelos dois lados da
questão israelo-palestiniana. Em que sentidos?
1) em primeiro lugar, pela forma clara como permitiu perceber o
diferente valor atribuído à vida humana consoante a sua origem
geográfica e ideológica: ficámos a saber que uma vida de um militar
israelita vale 1027 vidas de cidadãos palestinianos. Repito: 1 militar =
1027 cidadãos. E o que fazem os media? Acompanham, a par e passo, os
primeiros passos... desse 1. Ou seja, acompanhar 1 cidadão de um lado do
problema é, para os nossos media, mais relevante e noticiável que
acompanhar 1027 cidadãos do outro lado do problema. Quanto a isto,
defenda esta parcialidade quem tiver suficiente descaramento ético e
profissional para ousá-lo.
2) em segundo lugar, pela forma igualmente clara como permitiu
perceber o diferente valor do tempo de cativeiro: de um lado, e segundo o
discurso noticioso, um militar israelita que viveu, e cito, um "limbo"
de aproximadamente 1000 dias de cativeiro (sensivelmente três anos); do
outro lado, 1027 cidadãos palestinianos cujos tempos de cativeiro -
suscitados por acções tão absolutamente inócuas como a crítica pública
verbal da direcção e consequência da política israelita - chegaram
aos... 10950 dias (trinta anos). Qual a representação destas realidades
no discurso dos media? São os 1000 dias o "limbo". Fica por saber que
nome dariam - pois no seu discurso nenhum adjectivo foi considerado
necessário - aos trinta anos passados na prisão por alguns cidadãos
acusados do crime da verbalização crítica.
3) em terceiro e último lugar, a perenidade de termos de uma
xenofobia surda relativos a um dos lados da questão: os palestinianos
surgem, amiúde, como "árabes" ou "islamitas", definidos, portanto, pela
sua origem étnica e pela sua fé religiosa. Do outro lado o que temos,
segundo os media? Israelitas, definidos, portanto, pela nacionalidade.
Imaginem o Carmo que não cairia se, à semelhança do que é praticado para
com os "árabes", os israelitas fosse designados justamente por
"judeus". Não é difícil de preve-lo.
Escrevo-o com frequência: a verdadeira compreensão de um problema
tem, na sua base, a compreensão contextualizada dos fenómenos
envolvidos. Neste caso, é muito mais inaceitável que aqueles que
promovem a si mesmos como justos e rigorosos sejam aqueles que mais
incorrem na parcialidade de que acusam terceiros, mas que raramente
estão disponíveis a reconhecer em sede própria. Triste, no mínimo. Mas é
destas obscenas e criminosas parcialidades que se fazem as opiniões e
as representações que cada um de nós, distraído, vai incorporando.
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