20111019

Uma obscena e criminosa parcialidade

Entre as pérolas que os media todos os dias nos servem, investidas de uma aura de objectividade que raramente sobrevive a um escrutínio rigoroso, um tema revelou nos últimos dias, em toda a sua transparência, a falsidade da premissa de equidistância do discurso noticioso face ao objecto noticiado: a troca - palavra absolutamente inadequada mas infelizmente popularizada e legitimada através dessa popularização - entre prisioneiros políticos mantidos em cativeiro pelos dois lados da questão israelo-palestiniana. Em que sentidos?


1) em primeiro lugar, pela forma clara como permitiu perceber o diferente valor atribuído à vida humana consoante a sua origem geográfica e ideológica: ficámos a saber que uma vida de um militar israelita vale 1027 vidas de cidadãos palestinianos. Repito: 1 militar = 1027 cidadãos. E o que fazem os media? Acompanham, a par e passo, os primeiros passos... desse 1. Ou seja, acompanhar 1 cidadão de um lado do problema é, para os nossos media, mais relevante e noticiável que acompanhar 1027 cidadãos do outro lado do problema. Quanto a isto, defenda esta parcialidade quem tiver suficiente descaramento ético e profissional para ousá-lo.



2) em segundo lugar, pela forma igualmente clara como permitiu perceber o diferente valor do tempo de cativeiro: de um lado, e segundo o discurso noticioso, um militar israelita que viveu, e cito, um "limbo" de aproximadamente 1000 dias de cativeiro (sensivelmente três anos); do outro lado, 1027 cidadãos palestinianos cujos tempos de cativeiro - suscitados por acções tão absolutamente inócuas como a crítica pública verbal da direcção e consequência da política israelita - chegaram aos... 10950 dias (trinta anos). Qual a representação destas realidades no discurso dos media? São os 1000 dias o "limbo". Fica por saber que nome dariam - pois no seu discurso nenhum adjectivo foi considerado necessário - aos trinta anos passados na prisão por alguns cidadãos acusados do crime da verbalização crítica.


3) em terceiro e último lugar, a perenidade de termos de uma xenofobia surda relativos a um dos lados da questão: os palestinianos surgem, amiúde, como "árabes" ou "islamitas", definidos, portanto, pela sua origem étnica e pela sua fé religiosa. Do outro lado o que temos, segundo os media? Israelitas, definidos, portanto, pela nacionalidade. Imaginem o Carmo que não cairia se, à semelhança do que é praticado para com os "árabes", os israelitas fosse designados justamente por "judeus". Não é difícil de preve-lo.


Escrevo-o com frequência: a verdadeira compreensão de um problema tem, na sua base, a compreensão contextualizada dos fenómenos envolvidos. Neste caso, é muito mais inaceitável que aqueles que promovem a si mesmos como justos e rigorosos sejam aqueles que mais incorrem na parcialidade de que acusam terceiros, mas que raramente estão disponíveis a reconhecer em sede própria. Triste, no mínimo. Mas é destas obscenas e criminosas parcialidades que se fazem as opiniões e as representações que cada um de nós, distraído, vai incorporando.

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