Ouvia hoje a TSF pela manhã quando, sem anúncio ou justificação, o
seu director - Paulo Baldaia - entende servir-se da prerrogativa que em
Portugal é dada aos directores de Media de se constituirem comentadores
privilegiados em horário nobre. Sem contraditório algum, sem
enquadramento, sem imparcialidade. Deve ser bom, isto, de ser-se
director de um Media e poder, sem problema ou consciência, fazer a
defesa do que se quiser. Desta vez coube o brinde a Cavaco Silva, que
"não foi claro", que "não quis dizer o que disse" (portanto, a
prerrogativa estende-se a transmissão de pensamento), que "ficou
fragilizado". Há sortes assim.
Cavaco Silva está longe
de ser irresponsável. Coisa diferente é ser, cronicamente,
irresponsabilizado. Faz parte da condição de homo politicus em Portugal,
ter sempre da parte dos outros o benefício da dúvida, segundas,
terceiras, quartas, enésimas oportunidades. Por defeito, por hábito, por
pura estupidez ou conformismo, vamos (quase) todos desculpando, na pior
tradição catolicazinha, as falhas de quem nos falha, os insultos de
quem os insulta, os desrespeitos de quem é pago para representar-nos com
respeito. Quase todos alegremente nesta grandiosa viagem de estudo
pelas falhas graves do nosso sistema político como quem, à saída, guarda
recordações que de pouco servirão para o futuro. Assim, alegres e
contentes, satisfeitos e assegurados da ordem normal das coisas, ou
seja, de que algumas famílias continuarão "sem instabilidade" a jogar
entre si lugares de poder durante partidas de golfe e almoços faustosos,
continuamos também a perseguir a cenoura na ponta da cana, distraídos
face a tudo o resto. Há afirmações, crimes, atitudes, que só são
verdadeiramente consequentes quando pequeninas: se forem suficientemente
grandes, parece que pensamos não serem do nosso universo, do nosso
plano, mas do "deles", e que assim, nada sendo connosco, não deve
merecer-nos a atenção do tempo e do gesto. Há sortes assim.
Em
países onde os eleitores têm consciência do seu dever cívico, em países
onde os eleitos têm a mais elementar vergonha na cara, o "mais alto
dignatário do Estado" reconhecia o carácter vil e insultuoso da
comparação que fez com pensionistas de vidas absolutamente miseráveis
nas quais pagam mais de medicamentos do que recebem de pensão, e
demitia-se antes de ser demitido. Assim como os directores dos media
recordavam aquilo que aprenderam de ética, de deontologia, de
imparcialidade, e demitiam-se. Isto, claro, considerando que têm sequer
formação em alguma dessas coisas, o que em Portugal também se perdoa com
assinalável regularidade. Há sortes assim.
Mas isto
sou eu, que espero que os adultos ajam como adultos, que tenham memória e
"sentido de responsabilidade" (que é mais ou menos o mesmo que sentido
de ridículo). Querem ser europeus? Comecem por imitar a auto-crítica.
Sem ela, não podemos queixar-nos da nossa sorte. Somos o que permitimos
que nos seja feito.
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